Meu nome é TÍCIO, tenho 49 anos de idade, sou divorciado e atualmente desempregado. Bem, creio que todos os estudantes de Direito já ouviram ou leram sobre mim. É verdade, sou eu mesmo o famoso Tício dos livros de Direito Penal, aquele que desde os 13 anos vem cometendo diversos crimes entabulados no Código Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Pois é minha gente, nasci numa família totalmente desestruturada. Meu pai, coitado e que Deus o tenha, era traficante na comunidade em que vivíamos. Morreu quando eu era apenas uma criança. Lembro-me pouco dele, mas do pouco que lembro, não era boas recordações, foi ele quem colocou uma arma em minha mão pela primeira vez. Pois é, fazer o que? Eu ainda era criança e não entendia nada, mas lembro-me, que foi uma sensação incrível tê-la nas mãos.
Minha amada mãe era tão novinha quando engravidou pela primeira vez. Ora, para quem vive numa comunidade onde só tem traficante, acabam achando que eles são os máximos e que impõem respeito e medo pela favela. Toda mulher que ter respeito na favela, e para isso é preciso se envolver com pessoas como meu pai. Quando meu pai morreu, minha mãe ficou louca. Sem dinheiro para me sustentar, foi obrigada a se prostituir na esquina do centro da cidade. Foi numa dessas transas noturna que veio a nascer MÉVIO, este que sequer sabe quem é seu pai. Mévio todos conhecem não é mesmo? Esse também é famoso nos cursos de Direito, porém, outrora conto a vida dele.
Bem, essa foi minha infância. Cansado de ver minha mãe se prostituir e chorar todas as noites em casa resolvi por um fim nisso tudo. Com 13 procurei o chefe da comunidade, pois queria trabalhar para o crime. Assim sem escolha, nesse momento minha vida mudou e tive que crescer.
Nessa tenra idade, já andava armado, com um 38 na cintura. As “piriguetes” se amarravam quando passava de “motinha” com a arma empunhada nas mãos. Minha vida estava caminhando bem, vendia todos os dias algumas gramas de cocaína e crack para os “plays boys” da cidade, e retornava para comunidade cheio de “grana” no bolso. Embora só 10% do que era vendido era meu, já era o bastante para colocar alimentos em casa.
Numa dessas idas e vindas da cidade, deparei-me com a polícia. Não dei “mole”, evadir-me do local. Porém, poucos metros depois, com a policia no meu encalço, fui pego. Nunca me esqueço desse dia, apanhei feito cachorro. Logo, depois fui jogado numa cela com mais de 50 adolescentes na mesma situação.
A idéia do governo até que era boa, colocar crianças e adolescentes num estabelecimento com o objetivo de educá-lo e dar o tratamento digno de uma criança. Entretanto, não era isso que acontecia na maioria dos presídios na qual passei. Para começar o tratamento que ganhava todos os dias era a pancadaria. A cada pancada que levava no rosto, aumentava meu ódio pela sociedade. A educação que recebi de lá, veio dos meus companheiros de cela, me ensinaram a furtar carro, a matar, a manejar facas, a não ter medo, e as piores coisas que vocês possam imaginar.
Passados três meses dentro daquela instituição para menores ganhei minha liberdade. Agora sim, após todo esse tratamento e educação, estava pronto para confrontar a sociedade. Dali mesmo, avistei um carro dando bobeira e fui cometer meu primeiro delito.
Daí em diante, fui pegando fama de criminoso. E como todos sabem, cometi quase todos os crimes e delitos descritos no Código Penal: furto, roubo, homicídio, latrocínio, trafico, receptação e etc. Eu passei por quase todos os Conselhos Tutelares, Delegacias e Tribunais aqui da cidade. Era até cômico, os delegados não agüentava mais me prender, pois sempre em menos de 1 ano estava solto de novo. Fazer o que minha gente, a lei penal é branda e cheia de benefícios para vagabundos.
Acontece que, de tantas idas e vindas dos tribunais, comecei a olhar aquele lugar com outros olhos: o juiz togado de preto com um semblante sério, mas por dentro uma boa pessoa; o promotor com ira nos olhos pronto para me acusar; o escrivão querendo ser policial e achando que tinha moral; mas o melhor estava do meu lado, mesmo sabendo que eu era culpado e que não era uma boa pessoa, me defendia e lutava por meus direitos, esse era meu anjo chamado de Defensor Público.
Após anos no mundo do crime resolvi muda minha vida. Voltei para escola e fiz supletivo à noite. Infelizmente, com todo o preconceito existente na sociedade não foi nada fácil encontrar um emprego. De modo que, a única opção que tive foi trabalhar como vigia de carros na cidade. Não era um ambiente muito legal para mim, pois ali havia muitos traficantes, porém me mantive firme e forte até o final.
Nunca me esquecerei dos olhos da minha mãe de satisfação em ver-me na formatura do segundo grau. Ela chorou tanto mais tanto, que nem me contive lá do alto do tablado. Desejei em ver meu irmão ali, mas ele ainda estava preso.
Enfim, terminei a primeira etapa da minha vida. Agora precisava entrar numa faculdade. É certo que com o ensino que tive de supletivo não aprendi muita coisa, então a Universidade Federal não era meu lugar.
Assim sendo, a única alternativa que me restava era o PROUNI. Então, fiz a avaliação do ENEM e com a nota razoável que obtive não pude escolher uma das melhores faculdades da minha capital, mas me contentei com a Faculdade João e Maria, pouco conhecida na cidade.
Não foi nada fácil, acordar todos os dias 5:30 da manhã, pegar um ônibus lotado e após quase duas horas de viagem chegar no centro da cidade. Eu trabalhava nos estacionamentos de 7 horas até as 18:30 horas. De lá pegava outro transporte para a faculdade. Já na faculdade, entrava às 19:15 e saia às 22:45. No fim das aulas, novamente pegava outra condução e, após duas horas de viagem, chegava à minha casa.
Na faculdade, mesmo com todo o cansaço mental e físico, me alegrava bastante. Claro que nas matérias de penal, eu praticamente dava aulas. A turma ficava impressionada como eu sustentava algumas explicações em sala e algumas vezes até debatia com o mestre.
No quinto semestre da faculdade, surgiu a oportunidade de estágio em escritório de advocacia. Dias antes da entrevista, fui numa loja no centro e comprei o mais belo terno e sapato. Senti-me o máximo vestido todo social, para falar a verdade, já me sentia um advogado.
Então fui à entrevista no escritório. Quando entrei no escritório e vi todos me olhando de outra forma, não mais com medo de mim, mas sim com um olhar de respeito. Aguardei por alguns minutos na sala de estar, e logo fui atendido pelo Doutor Advogado. Mandei super bem na entrevista e fui contratado.
No outro dia, não precisava mais ir aos estacionamentos. Vesti meu terno e calcei os sapatos e fui ao estágio. Imaginei que, iria peticionar bastante e acompanharia o Doutor em todas as audiências. Entretanto, não foi como imaginava, passava o dia inteiro tirando cópias, servindo café, indo aos fóruns de ônibus buscar diversos processos, arquivando processos, e etc. E depois de 6 (seis) horas laboradas no escritório todos os dias, de segunda a sexta-feira, recebia ínfima quantia de R$ 500,00 mais vale-transporte. É certo que no estacionamento eu recebia 4 vezes mais.
Infelizmente, com o pouco que recebia no escritório não era o suficiente para manter minha família, assim tive que retornar pelas manhãs aos estacionamentos. É certo que não dava para vestir terno numa manhã calorenta nos estacionamento, então vestia uma roupa simples e deixava o terno na minha mochila. Saindo de lá, corria para o escritório, mas antes passava na rodoviária para trocar minhas vestimentas.
Bem, assim foi durante mais dois anos e seis meses da minha vida. Não foi nada fácil, pensei em desistir diversas vezes, mas sempre que lembrava daquele anjo ao meu lado nas audiências e uma força enorme invadia meu corpo e me motivava a vencer.
Finalmente, chegou a tão sonhada formatura. Esse foi o dia mais feliz da minha vida. Eu usando aquela beca preta, tirando fotos ao lado da minha mãe orgulhosa e dos meus amigos. Estava numa ansiedade para pegar meu canudo e dizer a todos que agora tenho nível superior e que mudei minha vida. No tablado daquele grande auditório recebi do reitor o canudo. Momento este que, registrei através de fotos e que estão na sala da minha casa.
Agora, viria o próximo passo da minha vida, isto é, me tornar advogado. Bem, pelo Estatuto da Ordem dos Advogados para ingressar os quadros permanentes da OAB era precisar ser aprovado antes no Exame de Ordem.
Até ai tudo bem. Ocorre que, surpreendentemente, ao chegar ao escritório de advocacia recebo a noticia que não poderia mais trabalhar ali, pois com minha graduação completa não era mais estudante, de modo que não poderia mais ser estagiário. Insisti que me contratasse, mas só havia vagas para advogados.
Ainda assim não fiquei abalado, pois logo seria advogado. Então, saquei da poupança R$ 200, 00 e paguei o boleto de inscrição no Exame de Ordem. A prova foi marcada para três meses depois da minha formatura.
Não foi nada fácil ter que voltar para os estacionamentos do centro. Confesso a vocês que me senti humilhado, após estudar cinco anos numa faculdade, auferir o nível superior e ter que retornar aos estacionamentos. Mas meus sonhos gritavam mais alto que meu próprio ego. E resistir durante aqueles três longos meses.
Passados três meses, chegou o dia da avaliação que colocaria minha vida nos trechos novamente e me tornaria também um anjo defensor. Porém, a alegria que tive quando entrei na sala de avaliação logo se foi quando me deparei com um caderno de prova com 100 questões e mais de vinte páginas. No início fui bem, porém logo se passaram 3 horas e ainda estava ali pelas 50 questões. O nervosismo foi tomando conta de mim e o que havia aprendido na faculdade já não lembrava mais. Tentei e lutei até o final. Sai naquele dia, desiludido com a avaliação, mas com esperança que ainda poderia passar na primeira fase.
Novamente, retornei a rotina dos estacionamentos e aguardei por mais um mês o resultado da avaliação. Então, chegado o dia do resultado preliminar, me deparei com minha reprovação, pois havia obtido 49 pontos. Minha vida desabou na minha frente e cai aos prantos. Porém, não desistir e recorri de mais de 10 questões da prova.
Ao final, saiu o resultado definitivo do Exame de Ordem e fui beneficiado com a anulação de uma questão, que inclusive não havia recorrido.
Ademais, transcorridos mais dois meses fiz a segunda fase da avaliação do Exame de Ordem. Outra angustia me deparei com cinco questões dificílimas e uma peça processual muito complexa, digna de um advogado com mais de dez anos de experiência na área.
É minha gente, não foi nada fácil descobrir que havia sido reprovado no meu primeiro Exame de Ordem. Após cinco anos de faculdade, acreditei que minha vida iria mudar, mas surpreendentemente retornei a estaca zero.
Confesso vocês que, não foi nada fácil descobri que havia sido reprovado no meu primeiro Exame de Ordem. Após cinco anos de faculdade, acreditei que minha vida iria mudar, mas surpreendentemente retornei a estaca zero. A OAB aponta que a culpa de minha reprovação foi por causa da péssima escolha de faculdade que freqüentei.
Ora, o problema é que a OAB não sabe da minha vida. Não sabe que não tive condições financeiras de custear uma faculdade melhor e que trabalhava 12 horas por dia vigiando carros e ainda tinha que ter forças para estudar mais 4 horas dentro das salas de aula. Bem como, que não tive condições de pagar um preparatório para o Exame de Ordem.
O próximo exame ainda não tem data marcada. E sabe lá se ainda ocorrerá esse ano, mas é certo que a OAB não tem pressa nenhuma em fazê-lo, pois quanto menos advogados na praça melhor para os que já então lá dentro.
Hoje não sou ninguém, nem sou estudante e muito menos advogado. Sou um ex-criminoso e bacharel em Direito. Não posso ter um trabalho digno e muito menos posso advogar.
Lutei para ser alguém e hoje não sou ninguém. Estou esquecido nessa sociedade e apenas sou lembrado nos livros de direito como marginal.
A Presidente diz que “Hoje não estuda quem não quer”. Ora, eu estudei e não posso trabalhar. O que adiantou o Governo Federal abrir as portas nas universidades para os estudantes pobres e a OAB fechar as portas para a profissão.
O que me resta da minha vida? O que dizer para minha mãe? O que dizer aos meus filhos? O que será de mim?
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