‘Não acredito que vou morrer por causa do meu trabalho’
Numa tarde em seu gabinete, há alguns dias, a juíza Patrícia Lourival Acioli, concedeu a O SÃO GONÇALOo que seria sua última entrevista, antes de ser assassinada. O texto já estava editado e para sua publicação faltava apenas uma sessão de fotos, que a juíza adiava dia após dia. “Vocês já têm fotos minhas no arquivo. Pode publicar com elas mesmos”, argumentava. É com essas fotos do nosso arquivo, que O SÃO GONÇALO leva aos leitores um relato inédito da atuação da magistrada, que estava 11 anos à frente do Tribunal do Júri de São Gonçalo, município com média histórica nos últimos 10 anos, de um homicídio por dia, conforme dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro. “Já tive notícias que queriam me matar. Medo de morrer todos nós temos, mas ter medo de morrer é uma coisa e deixar de fazer o meu trabalho por isso é totalmente diferente. Não acredito que vou morrer por causa do meu trabalho”, afirmou Patrícia Acioli. Infelizmente, para ela e para São Gonçalo, a juíza estava errada.
O SÃO GONÇALO -Nesses 11 anos à frente do Tribunal do Júri de São Gonçalo, a senhora já recebeu alguma ameaça? Já foi ameaçada de morte?
Juíza Patrícia Acioli -Eu já tive notícias que queriam me matar.
OSG - E a senhora tem medo de ser morta?
Patrícia Acioli - Medo de morrer todos nós temos. Mas, agora, ter medo de morrer é uma coisa e deixar de fazer o meu trabalho por isso é totalmente diferente. Eu não acredito que vou morrer por causa do meu trabalho. É uma questão filosófica que prefiro me abster, mas acho que quando a gente age buscando uma coisa efetivamente concreta, você tem uma proteção. Então, eu não acho que vou morrer em decorrência do meu trabalho.
OSG - Os policiais falam que está muito difícil trabalhar em São Gonçalo...
Patrícia Acioli - Sabe por que está difícil trabalhar? Porque a gente vai verificar se o trabalho deles está sendo em legítima defesa ou não. Por exemplo, se você está agindo legitimamente, se você está num confronto e matou num confronto e você agiu com a força naquele confronto. O que eu constato é a inversão dos valores. O certo passa a ser errado e o errado passa a ser certo. Eles têm lá um esquema que um não pode delatar o outro. Se eu vejo um policial roubando, extorquindo do outro ali, eu não vou contar para o meu chefe? Ou não vou tomar medidas cabíveis porque ele é meu colega? Ele não é seu colega. Ele é ladrão, ele é bandido. Ele tem que ser preso por você. Você não é igual a ele. Mas no meio policial acaba havendo uma inversão de valores. Acaba que, quem delatou, o cara começa a ser execrado. Então você pergunta por que eles temem meu trabalho? Eles não temem o meu trabalho. Eles temem o trabalho de qualquer pessoa que vá fiscalizar o trabalho deles, qualquer pessoa que vá se contrapor ao trabalho deles ao verificar. A diferença minha para os meus outros colegas é que eu vou lá. O que me trazem escrito, eu vou ver mesmo se aquilo combina. Aliás, eu faço isso apenas naquelas situações em que eu tenho ação penal e geralmente é requerimento do Ministério Público, que quer um reconstituição, uma reconstrução dos fatos. Mas isso não tem que ser verificado por mim. Os delegados de polícia da cidade são os responsáveis por esse tipo de investigação.
OSG - A senhora disse que o local do crime precisa ser preservado, mas a foi sua a determinação de impedir o PM de socorrer?
Patrícia Acioli - Não, nada disso. Não poderia dar uma determinação dessas. Porque quem sabe como tem que agir é quem está lá. São reuniões realizadas entre o Ministério Público, a PM, delegados, peritos e o Corpo de Bombeiros para resolver essas questões referentes aos autos de resistência. Vocês estão vendo como é o mito? Os argumentos que os PMs usavam é que a perícia demorava 50 horas para chegar, que o bombeiro que eles acionavam nunca chega ao local para fazer o socorro adequado. Então, o que gente pede aos policiais é que eles ajam da mesma forma que agiriam dentro de qualquer outra situação de uma tentativa de homicídio. Quando eles chegam ao local para apurar uma tentativa de homicídio e constatam que a vítima já é cadáver, eles não preservam o local? Então, quando se tratar também de autos de resistência que eles façam a mesma coisa.
OSG - Ao longo desses 11 anos a senhora foi usou sempre muito rigor na punição a crimes cometidos por policiais, os chamados autos de resistência...
Patrícia Acioli - Recentemente, o Ministério Público de São Gonçalo, que foi pioneiro nisso, resolveu fazer um pente fino. Em áreas de favelas, ou guetos, os policiais tinham um comportamento de “política de enfrentamento”. Então, o MP fez um estudo dessas ocorrências e constatou abusos e crimes cometidos por policiais. Na verdade, estes policiais cumprem determinações superiores. Mas se você conversar com eles, jamais vão dizer isso. E os superiores muito menos. Eles oficiosamente dão determinações que não constam em lugar nenhum por escrito. E, quando chamados às suas responsabilidades, eu digo os oficiais, os comandantes, dizem “não, eu nunca mandei fazer isso, só mando cumprir a lei e fazer estritamente o que a lei determina”.
OSG - O crime cometido por um policial é pior?
Patrícia Acioli - Para mim, crimes praticados pelos agentes públicos, são desvios de conduta. Porque a gente não pode imaginar que o poder público queira que alguém pratique crime. Como é policial, poderia ser um médico, um dentista, um advogado, engenheiro, juiz, jornalista. A profissão que o cara exerce é indiferente. Ele é criminoso, que por um acaso fez um concurso para a PM ou resolveu ser criminoso depois que entrou para a polícia. Isso aí seria o caso das milícias, o caso do tráfico, o caso dos grupos de extermínio. Eu estou me referindo a um outro tipo de situação que é muito mais grave. Porque o cara quando faz a opção de ser bandido, ele vai ser bandido dentro ou fora da polícia. Se ele não conseguir passar para a polícia, vai continuar sendo bandido e depois que ele passou no concurso ele ainda vai ser bandido. Aí a gente tem autoridade envolvida no crime? Não. A gente tem ser humano envolvido no crime.
OSG - E nos casos de autos de resistência?
Patrícia Acioli - É uma coisa muito diferente, porque não estamos falando de criminosos, mas sim de policiais que, em tese, estão cumprindo determinações passadas. Na realidade, só temos vítimas nessa situação. As vítimas de lá, que vão receber esse tipo de tratamento dos PMs, as vítimas policiais porque vão responder por tudo que fizerem. Você já viu algum coronel sentado no banco dos réus?
OSG - A senhora acha que as pessoas aceitam a violência e os excessos praticados contra criminosos?
Patrícia Acioli - Não importa se são traficantes, se é ladrão. Não está escrito no código penal: “pode matar traficante, matar ladrão”. Então, traficante, ladrão, quem é que seja, estão todos submetidos à mesma lei. Se estamos querendo prendê-los, estamos dizendo que estão descumprindo a lei, que é equivocada a forma dele agir, como é que vamos nos apresentar para prendê-lo já descumprindo a lei?
OSG - E os policiais têm noção disso?
Patrícia Acioli - O policial vai para uma comunidade dessa e é confrontado, afrontado de uma forma tal que, se ele não atirar, morre. Então ele já vai para lá com medo. Já se botou na posição de um policial, uma pessoa que é muito mal remunerada? Vamos falar do policial do bem, que têm muitos por aí. Um cara que não é ladrão, que não vive de falcatrua, um cara que cumpre sua determinação, que honra a farda que veste. Ele ganha mal, ele se expõe à beça, é profundamente cobrado, não tem nenhum tipo de apoio psicológico, de infra-estrutura assistencial. Ninguém quer saber se ele está com algum problema, se o filho dele está doente, se a mulher dele o chifrou, se ele está com algum problema de ordem econômica, ninguém quer saber. O cara ganha mal, é mal treinado, e lhe dão uma arma na mão. Muitas vezes ele não sabe nem o poder e o potencial de tiro que aquela arma tem, essa é a verdade. Tem um processo que eu observei, e não posso falar onde (risos), em que um policial pegou um fuzil para atirar e ele nem sabia que um fuzil tinha uma posição intermitente, posição rajada, não sabia mexer na arma que estava manuseando. Isso pode causar uma tragédia de grandes proporções. Então, na realidade, nós temos vítimas de todos os lados.
OSG - E isso tudo inspirou essa ação do Ministério Público?
Patrícia Acioli - Essas ações penais foram deflagradas e esse movimento começou aqui por São Gonçalo. Começou porque nós temos um promotor de Justiça que é super atuante, o Dr. Paulo Roberto, que é uma pessoa extremamente responsável. E nós tínhamos que tentar motivar o poder público, pelo menos local, o batalhão, os delegados de polícia, os peritos legistas, os médicos, para eles cumprirem a lei que é de 1940, que determina o que se chama de autos de resistência: que se tem que fazer a perícia do local, que não pode se desfazer o local do crime. Mesmo que o cara chegue no hospital com a cabeça de um lado e corpo de outro ele foi socorrido pelo policial. Mas independente dessa questão, existem outras questões que devem ser postas. Ainda que ele socorra a vítima, vamos imaginar que esteja viva, o local continua tendo que ser preservado. Ele não está alegando que foi recebido a tiros? Se não pegou no policial e não pegou na viatura, foi parar em outro lugar. Então o local tem que ser periciado, para que efetivamente essa dinâmica do que ele narra seja posta, depois que aquela perícia terminar vai se confrontar com o exame cadavérico, para se verificar se realmente é possível, pela narrativa que eles contam da história. É uma responsabilidade do policial militar, isso está lá no regulamento deles, preservar o local. E é dever da autoridade policial se dirigir ao local nos crimes onde há vestígios. Se ela não pode ir em pessoa, que mande um agente dela ir verificar aquilo. Se a lei fosse cumprida, essas situações dúbias iam se resolver de uma forma muito mais tranqüila. O policial vai ter mais segurança para exercer a atividade profissional dele e o cidadão vai ter mais segurança quanto ao exercício dessa atividade policial. Crimes praticados por agentes do Estado, para mim, são esses, onde o agente do Estado pratica o crime exercendo sua profissão. E digo que ele é mais vítima do que autor. Porque, infelizmente, covardemente, os que determinam eles cumprirem isso não assumem.
OSG - Mais os policiais que matam repetidamente?
Patrícia Acioli - Continua sendo vítima, pois quando ele retorna ao batalhão e fala que matou seis num confronto, ninguém vai verificar como ocorreram essas mortes. As pessoas não vão verificar o local, não vão investigar se aquilo aconteceu de verdade. Todo policial, em qualquer país civilizado, seria retirado das ruas. Se ele participou de um confronto que matou seis pessoas, ainda que legitimamente, você acha ele tem condições de entrar em outro confronto no dia seguinte? E o fator psicológico desse profissional? Em qualquer polícia, de qualquer lugar do mundo, esse policial não vai voltar à rua no dia seguinte como se nada estivesse acontecido. Vai se investigar, vai se apurar de verdade o que aconteceu sobre o confronto que ocorreu, ele vai ser afastado um pouco, vai receber atendimento. Porque uma pessoa de bem... você imagina matar seis pessoas em um dia no exercício de sua função? Isso não é possível. A gente aqui, quando condena pessoas, aquilo tudo passou por um processo, por uma ação penal. Graças a Deus nós não temos pena de morte, nem mesmo pena de prisão perpétua. Pelo contrário, aqui, no Brasil, um cara que é condenado há 30 anos, que é a pena máxima, se o crime for hediondo, ele fica apenas dois quintos da pena, e depois volta para o convívio social. A gente fica mal. Imagina você no exercício da sua função ter matado pessoas...
OSG - Apesar de a senhora achar que esses policiais são na maioria das vezes vítimas, por que eles temem tanto o seu trabalho?
Patrícia Acioli - Isso você tem que perguntar para eles. Eu não sei porque eles temem o meu trabalho. Acho que, na realidade, eu não vou concordar com você. Não acho que os policiais temem. Eu acho que vendem uma imagem do meu trabalho, que é muito conveniente.
OSG - Quem vende?
Patrícia Acioli - Aí eu não sei.
OSG - É a imprensa?
Patrícia Acioli - Não, de forma alguma. A imprensa noticia. Pelo menos nunca me vi nessa situação de ser endiabrada pela imprensa. Acho que vocês noticiam os fatos, pelo menos no que diz a minha pessoa.
OSG - Mas que eles temem o seu trabalho eles temem...
Patrícia Acioli - Isso é uma cultura, né? Isso é muito interessante, porque quando você teme alguém, você tem medo daquilo. Você não quer saber, você não conhece, você não se interessa. Mas ninguém diz, por exemplo, que eu acordo às seis hora da manhã, não só eu, mas eu e os promotores. Nós vamos lá para o batalhão dar palestra, para explicar como eles devem trabalhar, como devem fazer nessas situações.
OSG - Voltando aos autos de resistência. Esse pente fino que está acontecendo, desde essas reuniões, tem muito policiais respondendo desde 2001, 2002...é devido a esses inquéritos?
Patrícia Acioli - Esses inquéritos não estavam parados. Eles estavam em andamento. Agora, uma pessoa tem condição de resolver 7 mil inquéritos? Lendo um por um, examinando? Eu já falei para vocês, apenas 4% dos homicídios do Estado são apurados. Os outros 96% são inquéritos. Aí é um problema muito maior do que estamos aqui para resolver, então, o que aconteceu, é que o Ministério Público resolveu fazer realmente um pente fino, passar um pente fino nessas situações específicas de autos de resistência, e aí sim tomar providências.
OSG - Com relação à atuação de grupos de extermínio, de milícias, nesses 11 anos de trabalho aqui em São Gonçalo, o que está mais disseminado: os grupos de extermínios ou as milícias?
Patrícia Acioli - No início, eram os grupos de extermínio, mas eles são os embriões das milícias. Todo grupo de extermínio, a forma com que os grupos de extermínio foram organizados, acabaram sendo os embriões das milícias. Isso aí não é só aqui na nossa cidade, é em todo o Estado.
OSG - Se uma pessoa é testemunha de um crime, qual o conselho que a senhora daria para ela?
Patrícia Acioli - Procure a autoridade competente e relate. Se você tem medo de procurar a delegacia de polícia, procure o Ministério Público. Porque essa falsa idéia de que se ficarmos com boca fechada estaremos protegidos, isso é uma mentira. Porque na realidade, você vai sempre representar uma ameaça, então se você representa uma ameaça para outra pessoa ela pode te matar também. Então o conselho que eu dou é que procure uma autoridade competente e fale. Se tem medo da autoridade policial, procure o Ministério Público.
OSG - Pelos casos que a senhora conhece, de pessoas que procuraram a autoridade policial, o MP, a senhora acha que o Estado está preparado para dar proteção a essa testemunha?
Patrícia Acioli - Aqui temos 100% de eficiência em termos de resultados. O Estado não está preparado para dar proteção, não, mas mesmo sem a proteção do Estado ela vai estar mais protegida falando do que em silêncio. Porque quando você fica em silêncio é muito simples: só eu sei que você sabe. O “eu” é o assassino, então, se você morrer, a sua investigação, a sua morte, só vai ser mais uma.
OSG - É porque a gente tem visto casos de testemunhas que perderam a vida, pela falta de proteção do Estado...
Patrícia Acioli - Aqui em São Gonçalo nenhuma. A que perdeu a vida aqui largou o serviço de proteção por vontade própria. Ele foi para a área onde ele não podia ir pelas suas próprias pernas. Agora, nós não temos aqui na Vara nenhum caso de testemunha que tenha sido assassinada sob proteção ou mesmo sem proteção do Estado. Nós temos duas que foram assassinadas, as duas, com o da van são três... Então, as três que foram assassinadas, todas as três estavam em local que elas não poderiam estar.
O SÃO GONÇALO -Nesses 11 anos à frente do Tribunal do Júri de São Gonçalo, a senhora já recebeu alguma ameaça? Já foi ameaçada de morte?
Juíza Patrícia Acioli -Eu já tive notícias que queriam me matar.
OSG - E a senhora tem medo de ser morta?
Patrícia Acioli - Medo de morrer todos nós temos. Mas, agora, ter medo de morrer é uma coisa e deixar de fazer o meu trabalho por isso é totalmente diferente. Eu não acredito que vou morrer por causa do meu trabalho. É uma questão filosófica que prefiro me abster, mas acho que quando a gente age buscando uma coisa efetivamente concreta, você tem uma proteção. Então, eu não acho que vou morrer em decorrência do meu trabalho.
OSG - Os policiais falam que está muito difícil trabalhar em São Gonçalo...
Patrícia Acioli - Sabe por que está difícil trabalhar? Porque a gente vai verificar se o trabalho deles está sendo em legítima defesa ou não. Por exemplo, se você está agindo legitimamente, se você está num confronto e matou num confronto e você agiu com a força naquele confronto. O que eu constato é a inversão dos valores. O certo passa a ser errado e o errado passa a ser certo. Eles têm lá um esquema que um não pode delatar o outro. Se eu vejo um policial roubando, extorquindo do outro ali, eu não vou contar para o meu chefe? Ou não vou tomar medidas cabíveis porque ele é meu colega? Ele não é seu colega. Ele é ladrão, ele é bandido. Ele tem que ser preso por você. Você não é igual a ele. Mas no meio policial acaba havendo uma inversão de valores. Acaba que, quem delatou, o cara começa a ser execrado. Então você pergunta por que eles temem meu trabalho? Eles não temem o meu trabalho. Eles temem o trabalho de qualquer pessoa que vá fiscalizar o trabalho deles, qualquer pessoa que vá se contrapor ao trabalho deles ao verificar. A diferença minha para os meus outros colegas é que eu vou lá. O que me trazem escrito, eu vou ver mesmo se aquilo combina. Aliás, eu faço isso apenas naquelas situações em que eu tenho ação penal e geralmente é requerimento do Ministério Público, que quer um reconstituição, uma reconstrução dos fatos. Mas isso não tem que ser verificado por mim. Os delegados de polícia da cidade são os responsáveis por esse tipo de investigação.
OSG - A senhora disse que o local do crime precisa ser preservado, mas a foi sua a determinação de impedir o PM de socorrer?
Patrícia Acioli - Não, nada disso. Não poderia dar uma determinação dessas. Porque quem sabe como tem que agir é quem está lá. São reuniões realizadas entre o Ministério Público, a PM, delegados, peritos e o Corpo de Bombeiros para resolver essas questões referentes aos autos de resistência. Vocês estão vendo como é o mito? Os argumentos que os PMs usavam é que a perícia demorava 50 horas para chegar, que o bombeiro que eles acionavam nunca chega ao local para fazer o socorro adequado. Então, o que gente pede aos policiais é que eles ajam da mesma forma que agiriam dentro de qualquer outra situação de uma tentativa de homicídio. Quando eles chegam ao local para apurar uma tentativa de homicídio e constatam que a vítima já é cadáver, eles não preservam o local? Então, quando se tratar também de autos de resistência que eles façam a mesma coisa.
OSG - Ao longo desses 11 anos a senhora foi usou sempre muito rigor na punição a crimes cometidos por policiais, os chamados autos de resistência...
Patrícia Acioli - Recentemente, o Ministério Público de São Gonçalo, que foi pioneiro nisso, resolveu fazer um pente fino. Em áreas de favelas, ou guetos, os policiais tinham um comportamento de “política de enfrentamento”. Então, o MP fez um estudo dessas ocorrências e constatou abusos e crimes cometidos por policiais. Na verdade, estes policiais cumprem determinações superiores. Mas se você conversar com eles, jamais vão dizer isso. E os superiores muito menos. Eles oficiosamente dão determinações que não constam em lugar nenhum por escrito. E, quando chamados às suas responsabilidades, eu digo os oficiais, os comandantes, dizem “não, eu nunca mandei fazer isso, só mando cumprir a lei e fazer estritamente o que a lei determina”.
OSG - O crime cometido por um policial é pior?
Patrícia Acioli - Para mim, crimes praticados pelos agentes públicos, são desvios de conduta. Porque a gente não pode imaginar que o poder público queira que alguém pratique crime. Como é policial, poderia ser um médico, um dentista, um advogado, engenheiro, juiz, jornalista. A profissão que o cara exerce é indiferente. Ele é criminoso, que por um acaso fez um concurso para a PM ou resolveu ser criminoso depois que entrou para a polícia. Isso aí seria o caso das milícias, o caso do tráfico, o caso dos grupos de extermínio. Eu estou me referindo a um outro tipo de situação que é muito mais grave. Porque o cara quando faz a opção de ser bandido, ele vai ser bandido dentro ou fora da polícia. Se ele não conseguir passar para a polícia, vai continuar sendo bandido e depois que ele passou no concurso ele ainda vai ser bandido. Aí a gente tem autoridade envolvida no crime? Não. A gente tem ser humano envolvido no crime.
OSG - E nos casos de autos de resistência?
Patrícia Acioli - É uma coisa muito diferente, porque não estamos falando de criminosos, mas sim de policiais que, em tese, estão cumprindo determinações passadas. Na realidade, só temos vítimas nessa situação. As vítimas de lá, que vão receber esse tipo de tratamento dos PMs, as vítimas policiais porque vão responder por tudo que fizerem. Você já viu algum coronel sentado no banco dos réus?
OSG - A senhora acha que as pessoas aceitam a violência e os excessos praticados contra criminosos?
Patrícia Acioli - Não importa se são traficantes, se é ladrão. Não está escrito no código penal: “pode matar traficante, matar ladrão”. Então, traficante, ladrão, quem é que seja, estão todos submetidos à mesma lei. Se estamos querendo prendê-los, estamos dizendo que estão descumprindo a lei, que é equivocada a forma dele agir, como é que vamos nos apresentar para prendê-lo já descumprindo a lei?
OSG - E os policiais têm noção disso?
Patrícia Acioli - O policial vai para uma comunidade dessa e é confrontado, afrontado de uma forma tal que, se ele não atirar, morre. Então ele já vai para lá com medo. Já se botou na posição de um policial, uma pessoa que é muito mal remunerada? Vamos falar do policial do bem, que têm muitos por aí. Um cara que não é ladrão, que não vive de falcatrua, um cara que cumpre sua determinação, que honra a farda que veste. Ele ganha mal, ele se expõe à beça, é profundamente cobrado, não tem nenhum tipo de apoio psicológico, de infra-estrutura assistencial. Ninguém quer saber se ele está com algum problema, se o filho dele está doente, se a mulher dele o chifrou, se ele está com algum problema de ordem econômica, ninguém quer saber. O cara ganha mal, é mal treinado, e lhe dão uma arma na mão. Muitas vezes ele não sabe nem o poder e o potencial de tiro que aquela arma tem, essa é a verdade. Tem um processo que eu observei, e não posso falar onde (risos), em que um policial pegou um fuzil para atirar e ele nem sabia que um fuzil tinha uma posição intermitente, posição rajada, não sabia mexer na arma que estava manuseando. Isso pode causar uma tragédia de grandes proporções. Então, na realidade, nós temos vítimas de todos os lados.
OSG - E isso tudo inspirou essa ação do Ministério Público?
Patrícia Acioli - Essas ações penais foram deflagradas e esse movimento começou aqui por São Gonçalo. Começou porque nós temos um promotor de Justiça que é super atuante, o Dr. Paulo Roberto, que é uma pessoa extremamente responsável. E nós tínhamos que tentar motivar o poder público, pelo menos local, o batalhão, os delegados de polícia, os peritos legistas, os médicos, para eles cumprirem a lei que é de 1940, que determina o que se chama de autos de resistência: que se tem que fazer a perícia do local, que não pode se desfazer o local do crime. Mesmo que o cara chegue no hospital com a cabeça de um lado e corpo de outro ele foi socorrido pelo policial. Mas independente dessa questão, existem outras questões que devem ser postas. Ainda que ele socorra a vítima, vamos imaginar que esteja viva, o local continua tendo que ser preservado. Ele não está alegando que foi recebido a tiros? Se não pegou no policial e não pegou na viatura, foi parar em outro lugar. Então o local tem que ser periciado, para que efetivamente essa dinâmica do que ele narra seja posta, depois que aquela perícia terminar vai se confrontar com o exame cadavérico, para se verificar se realmente é possível, pela narrativa que eles contam da história. É uma responsabilidade do policial militar, isso está lá no regulamento deles, preservar o local. E é dever da autoridade policial se dirigir ao local nos crimes onde há vestígios. Se ela não pode ir em pessoa, que mande um agente dela ir verificar aquilo. Se a lei fosse cumprida, essas situações dúbias iam se resolver de uma forma muito mais tranqüila. O policial vai ter mais segurança para exercer a atividade profissional dele e o cidadão vai ter mais segurança quanto ao exercício dessa atividade policial. Crimes praticados por agentes do Estado, para mim, são esses, onde o agente do Estado pratica o crime exercendo sua profissão. E digo que ele é mais vítima do que autor. Porque, infelizmente, covardemente, os que determinam eles cumprirem isso não assumem.
OSG - Mais os policiais que matam repetidamente?
Patrícia Acioli - Continua sendo vítima, pois quando ele retorna ao batalhão e fala que matou seis num confronto, ninguém vai verificar como ocorreram essas mortes. As pessoas não vão verificar o local, não vão investigar se aquilo aconteceu de verdade. Todo policial, em qualquer país civilizado, seria retirado das ruas. Se ele participou de um confronto que matou seis pessoas, ainda que legitimamente, você acha ele tem condições de entrar em outro confronto no dia seguinte? E o fator psicológico desse profissional? Em qualquer polícia, de qualquer lugar do mundo, esse policial não vai voltar à rua no dia seguinte como se nada estivesse acontecido. Vai se investigar, vai se apurar de verdade o que aconteceu sobre o confronto que ocorreu, ele vai ser afastado um pouco, vai receber atendimento. Porque uma pessoa de bem... você imagina matar seis pessoas em um dia no exercício de sua função? Isso não é possível. A gente aqui, quando condena pessoas, aquilo tudo passou por um processo, por uma ação penal. Graças a Deus nós não temos pena de morte, nem mesmo pena de prisão perpétua. Pelo contrário, aqui, no Brasil, um cara que é condenado há 30 anos, que é a pena máxima, se o crime for hediondo, ele fica apenas dois quintos da pena, e depois volta para o convívio social. A gente fica mal. Imagina você no exercício da sua função ter matado pessoas...
OSG - Apesar de a senhora achar que esses policiais são na maioria das vezes vítimas, por que eles temem tanto o seu trabalho?
Patrícia Acioli - Isso você tem que perguntar para eles. Eu não sei porque eles temem o meu trabalho. Acho que, na realidade, eu não vou concordar com você. Não acho que os policiais temem. Eu acho que vendem uma imagem do meu trabalho, que é muito conveniente.
OSG - Quem vende?
Patrícia Acioli - Aí eu não sei.
OSG - É a imprensa?
Patrícia Acioli - Não, de forma alguma. A imprensa noticia. Pelo menos nunca me vi nessa situação de ser endiabrada pela imprensa. Acho que vocês noticiam os fatos, pelo menos no que diz a minha pessoa.
OSG - Mas que eles temem o seu trabalho eles temem...
Patrícia Acioli - Isso é uma cultura, né? Isso é muito interessante, porque quando você teme alguém, você tem medo daquilo. Você não quer saber, você não conhece, você não se interessa. Mas ninguém diz, por exemplo, que eu acordo às seis hora da manhã, não só eu, mas eu e os promotores. Nós vamos lá para o batalhão dar palestra, para explicar como eles devem trabalhar, como devem fazer nessas situações.
OSG - Voltando aos autos de resistência. Esse pente fino que está acontecendo, desde essas reuniões, tem muito policiais respondendo desde 2001, 2002...é devido a esses inquéritos?
Patrícia Acioli - Esses inquéritos não estavam parados. Eles estavam em andamento. Agora, uma pessoa tem condição de resolver 7 mil inquéritos? Lendo um por um, examinando? Eu já falei para vocês, apenas 4% dos homicídios do Estado são apurados. Os outros 96% são inquéritos. Aí é um problema muito maior do que estamos aqui para resolver, então, o que aconteceu, é que o Ministério Público resolveu fazer realmente um pente fino, passar um pente fino nessas situações específicas de autos de resistência, e aí sim tomar providências.
OSG - Com relação à atuação de grupos de extermínio, de milícias, nesses 11 anos de trabalho aqui em São Gonçalo, o que está mais disseminado: os grupos de extermínios ou as milícias?
Patrícia Acioli - No início, eram os grupos de extermínio, mas eles são os embriões das milícias. Todo grupo de extermínio, a forma com que os grupos de extermínio foram organizados, acabaram sendo os embriões das milícias. Isso aí não é só aqui na nossa cidade, é em todo o Estado.
OSG - Se uma pessoa é testemunha de um crime, qual o conselho que a senhora daria para ela?
Patrícia Acioli - Procure a autoridade competente e relate. Se você tem medo de procurar a delegacia de polícia, procure o Ministério Público. Porque essa falsa idéia de que se ficarmos com boca fechada estaremos protegidos, isso é uma mentira. Porque na realidade, você vai sempre representar uma ameaça, então se você representa uma ameaça para outra pessoa ela pode te matar também. Então o conselho que eu dou é que procure uma autoridade competente e fale. Se tem medo da autoridade policial, procure o Ministério Público.
OSG - Pelos casos que a senhora conhece, de pessoas que procuraram a autoridade policial, o MP, a senhora acha que o Estado está preparado para dar proteção a essa testemunha?
Patrícia Acioli - Aqui temos 100% de eficiência em termos de resultados. O Estado não está preparado para dar proteção, não, mas mesmo sem a proteção do Estado ela vai estar mais protegida falando do que em silêncio. Porque quando você fica em silêncio é muito simples: só eu sei que você sabe. O “eu” é o assassino, então, se você morrer, a sua investigação, a sua morte, só vai ser mais uma.
OSG - É porque a gente tem visto casos de testemunhas que perderam a vida, pela falta de proteção do Estado...
Patrícia Acioli - Aqui em São Gonçalo nenhuma. A que perdeu a vida aqui largou o serviço de proteção por vontade própria. Ele foi para a área onde ele não podia ir pelas suas próprias pernas. Agora, nós não temos aqui na Vara nenhum caso de testemunha que tenha sido assassinada sob proteção ou mesmo sem proteção do Estado. Nós temos duas que foram assassinadas, as duas, com o da van são três... Então, as três que foram assassinadas, todas as três estavam em local que elas não poderiam estar.
Fonte: O São Gonçalo.
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